Quando o "top-down" acontece, de quem é a culpa?
A resposta pode ser muito diferente da que você está pensando.
Todo mundo que trabalha com produtos digitais já passou por isso alguma vez na vida. Aquela ideia de uma nova feature ou mudança de prioridades que chega assim, sem mais nem menos, sem muita explicação, e que nos faz mudar o que havíamos planejado. A sensação é sempre a mesma — frustração, insegurança e aquele sentimento de que alguém tomou uma decisão que deveria ser nossa.
Esse é o tão famoso e temido “top-down”, que deixa rastros de destruição por onde passa — principalmente na confiança de quem está à frente do produto.
Numa definição 'folclórica’ (porém bastante aceita pelo mercado), decisões "top-down” são aquelas tomadas de maneira aparentemente arbitrária e muitas vezes autocrática, por alguém de um cargo mais alto, no lugar de quem supostamente deveria fazer esse papel.
Mas será que chegamos a pensar sobre o que causa uma decisão top-down?
Será que atribuímos a culpa desse tipo de decisão — e de suas consequências — ao motivo e às pessoas certas?
Será que pensamos a fundo sobre qual é nossa responsabilidade quando esse tipo de situação acontece?
Será que nossas expectativas sobre nosso lugar de tomada de decisão estão corretas?
E além disso: nós estamos buscando oportunidades para resolver esse problema?
Ou simplesmente nos acostumamos a reclamar?
Pois é. A verdade é que as coisas não são necessariamente como parecem. Nesse texto, a ideia é tentar olhar de maneira totalmente objetiva pra esse problema, mapeando, por exemplo:
Quando nós somos a causa de uma decisão top-down
Quando perdemos a oportunidade de tomar uma decisão — e alguém decide em nosso lugar
Quando uma decisão não deveria ser nossa (mas achamos que sim).
Entender esses contextos nos coloca numa posição de maior controle sobre cenários possíveis — permitindo que a gente se prepare melhor, entenda melhor nosso papel e trabalhe com menos ansiedade e insegurança.
1. Quando nós somos a causa de uma decisão top-down
Situação #1: testamos as ideias que vem de fora diferente do que testamos as nossas próprias ideias
É algo que ninguém admite, mas acontece — e bastante. O mais comum é usar o próprio processo de validação pra caçar evidências que invalidem a hipótese que não queremos que vá pra frente (seja lá por qual motivo for). Outra tática (no sentido vil da palavra) é ignorar sinais positivos de validação — ou colocá-los sobre um escrutínio desproporcional, que normalmente acaba enfraquecendo o projeto.
Ainda uma terceira abordagem é escolher um método não adequado para testar aquela hipótese, o que pode comprometer a qualidade das evidências coletadas. Na minha opinião fazer esse tipo de coisa é algo absolutamente leviano e não deveria existir.
Situação #2: usamos dados para invalidar ou desestimular uma ideia que não é nossa
O acesso que pessoas de produto (principalmente PMs) têm aos dados do produto às vezes pode favorecer algumas forçadas de barra em direção a alguma ideia — seja a favor ou contra ela. Isso acontece bastante em lugares que não têm métricas bem estruturadas e amarradas com resultados de negócio, pois permite que a avaliação do impacto de uma iniciativa possa ser menos objetiva.
E aí o que fazemos muitas vezes é tentar encontrar correlações que ajudem a argumentar contra alguma ideia. O pior é que muitas vezes essas correlações — mesmo sendo das mais absurdas — não são questionadas para não ferir a legitimidade de quem fez a análise. Isso é triste demais.
Pra ficar claro: é óbvio que a grande maioria das pessoas que trabalham com produto não atuam com más intenções de maneira deliberada. Provavelmente, a causa raiz desse tipo de comportamento está ligada a culturas corporativas fechadas, pouco colaborativas e que oferecem pouca ou nenhuma segurança psicológica. É extremamente difícil operar de maneira sã nesses lugares — e aí as pessoas acabam criando seus mecanismos de defesa como estratégia de sobrevivência.
2. Quando perdemos a oportunidade de tomar uma decisão — e alguém decide por nós
Situação #1: o efeito “bikeshedding"
Quantas vezes perdemos o timing de uma ideia, simplesmente porque passamos muito tempo discutindo, sem embasamento, sua validade ou prioridade — ao invés de simplesmente ir lá e testá-la?
Acabamos de alguma forma nos esquecendo de que essa etapa da criação e teste de hipóteses é só uma pequena primeira etapa no ciclo de desenvolvimento de um produto. E com isso perdemos tempo teorizando ao invés de mexer no produto pra tentar de fato gerar resultados ou, na pior das hipótese, aprendizado relevante para o futuro.
Nota: Já publicamos um texto inteiro sobre bikeshedding, aqui.
Situação #2: superestimar nossa competência em pesquisa com usuários
Talvez você não acredite, mas muitas vezes os executivos de uma empresa têm mais contato com clientes e usuários do que o time de produto (mesmo em empresas que possuem times de pesquisa).
Se você tiver curiosidade, pergunte para o CEO da sua empresa com quantas pessoas ele conversou no último mês — você pode se surpreender com a resposta. O que aconteceu é que muita gente de produto sentou confortavelmente em cima do título de “voz do usuário” e não viu que, na prática, não é tão difícil ir pra rua, ouvir o que as pessoas têm a dizer e transformar isso em insight pra produto. E que pra ficar bom de método a parte mais importante é exercitar.
Aquela época em que o CEO que achava que pesquisa era perda de tempo ficou lá atrás. Não entender esse contexto é potencialmente perder muita oportunidade de colaboração e melhorar a qualidade das decisões que precisamos tomar.
3. Quando uma decisão não deveria ser nossa (mas achamos que sim)
Situação #1: produto é um esporte coletivo
A verdade é que normalmente executivos têm boas ideias — eles só talvez não estejam contando pra você (provavelmente pra tentar preservar sua autonomia). Boa parte das vezes em que eu ou alguém do meu time recebeu alguma interferência de fora, é porque não tínhamos apostas com potencial de impacto suficiente para o que precisávamos entregar de resultado. Ou não comunicamos com a transparência e/ou embasamento necessários para as partes interessadas.
Pra mim é simples: ninguém interfere num backlog que tem apostas bem embasadas, de alto potencial de impacto para o negócio, executadas de maneira adequada (a não ser no caso de uma mudança de estratégia, por exemplo). A gente pode reclamar, mas nesse caso não estamos fazendo nosso trabalho direito.
Nota: Já escrevi sobre o tema Impacto em produtos digitais. Nesse texto aqui.
Situação #2: falta de transparência
Um processo maduro de desenvolvimento de produtos deveria contemplar mecanismos claros, objetivos e colaborativos para coleta, avaliação e priorização de ideias e oportunidades. Mas nem sempre isso acontece. E quando as regras do jogo não estão claras, cria-se uma condição bem favorável para decisões pouco embasadas, enviesadas e mesmo arbitrárias.
Se existe um processo bem estruturado e objetivo de coleta e priorização de apostas e iniciativas, não existe razão pela qual não convidar toda a empresa pra participar. E quando esse processo funciona, todas as ideias são avaliadas a partir dos mesmos critérios e o resultado tende a ser uma lista bastante rica de apostas. No final das contas esse é o nosso objetivo como líderes de produto — e não o controle absoluto sobre o processo.
Pessoas de produto: precisamos falar mais sobre esse assunto
Tomar decisões é parte inerente sobre o que fazemos. Entender a dinâmica e as variáveis envolvidas nesse que é um processo complexo [que também já foi pauta de outro texto] é essencial pra que a gente consiga ter mais controle e previsibilidade sobre o nosso trabalho — e atuar de maneira mais segura e responsável.
Provocar esse tipo de discussão, sobre algo que é tão importante pra nós, é — ou deveria ser — o que se espera de qualquer profissional nesse mercado com mais experiência e que pode contribuir refletindo ou reagindo.
É isso o que estamos tentando fazer aqui nesta newsletter, o tempo todo. Aumentar a simetria de informação entre pessoas de produto e demais partes interessadas dentro de uma empresa — tornando-as mais preparadas para a complexidade dos desafios existentes na criação e gestão de um produto digital.
Se você quer falar com a gente sobre esse assunto — seja pra trocar experiências, contar alguma história ou fazer alguma sugestão, escreve pra gente em paulo[at]produtosparahumanos.com ou tod[at]produtosparahumanos.com
Muito pertinente a reflexão 👏