É possível ser feliz trabalhando com produtos digitais?
Você já se perguntou se é feliz fazendo o que faz? A carreira em produto tem estado cada vez mais sob os holofotes — mas nem sempre as pessoas falam sobre as partes ruins da profissão.
Escrevi esse texto pois tenho visto um certo descolamento que acho problemático. Vejo gente falando sobre suas grandes conquistas e sobre o orgulho de impactar o mercado de [coloque aqui o nome de um setor] e mudar a vida das pessoas. Mas também tenho estado em contato com bastante gente confusa, com a saúde mental em frangalhos, tentando sobreviver dia após dia.
Esse texto não é pra falar sobre o primeiro grupo. Ele é pra tentar jogar um pouco de luz, de maneira honesta e propositiva, sobre o que eu acho que o segundo grupo está vivendo — assim como eu já vivi também. Inclusive, em outros momentos da minha carreira, eu demorei muito tempo pra entender o quanto estive infeliz — e o quanto isso impactou minha vida e minha saúde como um todo. Numa época em que quase não se falava sobre burnout e muito menos se associava condições como Síndrome de Estresse Pós-Traumático a situações de trabalho, foi muito fácil assumir a culpa — e achar que não estava preparado o suficiente. O fato é que dificilmente se está sozinho nessa — por isso acho necessário falar sobre o assunto tanto quanto for possível.
Mas enfim. Por que eu acho que tem muita gente cansada e triste por aí?
É óbvio que tem o efeito da pandemia — mas eu quero me afastar disso e entrar em questões que de fato possam ajudar. Porque falar do novo normal não ajuda muito.
Pra mim, trabalhar construindo produtos digitais têm certas particularidades em relação a outras profissões — sem olimpíada do sofrimento aqui; são apenas constatações sobre as quais eu acho importante entender pra enxergar caminhos de solução:
O trabalho nunca acaba: muitas vezes o sentimento bom que vem com a finalização de algo nunca chega. Sempre tem um novo patamar pra se chegar, uma nova ideia pra testar, um débito técnico pra pagar. O fato de que "nunca tá pronto" é um potencial causador de bads.
Falta de clareza sobre objetivos ou qualidade: muita gente (mas muita gente mesmo) trabalha todos os dias pra atingir uma barra que é invisível e oscila rápido. Pessoas diferentes na empresa têm entendimentos diferentes sobre o que é qualidade ou simplesmente mudam de ideia no meio do processo, e isso ativa diversos gatilhos de ansiedade, mesmo pra quem não tem algum transtorno de ansiedade. Alguns lugares, contudo, têm um processo bem estruturado de discussão e definição desses critérios — mas quando isso não existe, é receita pra um time ansioso e inseguro.
Muita incerteza: a gente trabalha com coisas nas quais existe muito risco de não dar certo. E se isso não é naturalizado (nem o fato de existirem incertezas e nem o fato de que pode não dar certo) e mesmo celebrado em todos os níveis de uma organização, o time nunca vai se sentir pisando em terreno firme. É como viver num constante experimento de Gato de Schrodinger.
Obsessão pela resposta correta: nós estudamos e somos criados para viver sob o fato de que quem tem as respostas é bem sucedido — e quem não as tem, é incompetente. E, infelizmente, muitos ambientes organizacionais operam dessa forma, criando mecanismos de recompensa que despriorizam a capacidade para fazer as perguntas corretas e as ferramentas para se chegar nas respostas, ao invés de somente intui-las. Ainda vejo muita gente buscando ter as respostas certas e se frustrando recorrentemente, simplesmente porque isso quase nunca é possível. Esse sentimento se acumula e afeta de um jeito permanente a confiança do time.
É pra sentar e chorar, né?
Não necessariamente (mas se quiser pode). A primeira coisa que eu proponho aqui é justamente reconhecer que tudo isso existe — e aceitar que é parte indivisível da nossa profissão. Estar consciente e aceitar esse contexto como um dos lados do que fazemos é essencial pra termos uma visão mais realista sobre o que fazemos— e não enviesada só pelas coisas legais (que são várias também). Não dá pra tapar o sol com a peneira por muito tempo — e é por isso que tem tanta gente triste por aí, por esperar que de alguma maneira as coisas sejam diferentes em algum momento.
Tá mas e aí? Dá mesmo pra ser feliz trabalhando com produtos digitais? Pra mim a resposta é sim. Mas a felicidade não é absoluta: nem sempre vamos estar felizes trabalhando. Vamos passar por momentos de ansiedade, dúvida, estresse, frustração — entre outras coisas. Mas eu acredito que, sim, é possível aumentar nosso nível geral de felicidade, pra que a gente possa ser feliz quando olhamos o saldo de uma semana, de um mês ou de um ano [veja o final do texto pra entender no que está baseado o meu conceito de felicidade1].
E eu acho que o que se precisa fazer pra ajudar nesse processo não deveria ser ultra complexo ou difícil de adotar. O conjunto de 5 práticas que listo a seguir são um compilado de coisas que me ajudaram a evitar certas situações que via de regra acabavam afetando meu emocional — e sei que afetam o emocional de muita gente como eu. A ideia é ter ferramental pra que a gente não se coloque de maneira recorrente nesse tipo de situação — em outras palavras, (re)assumir o controle sobre o que é importante pra nós.
Importante: fazer terapia ainda é a melhor coisa que você pode fazer por você mesmo — e isso é indiscutível.
Prática #1: Eliminar o que não é central da agenda
Pode parecer óbvio, mas uma das grandes causas de sofrimento no trabalho é a sensação da falta de controle sobre nossa própria agenda. Nossos planos podem ir por água abaixo em questão de minutos, enquanto nossa caixa de entrada lota de convites para reuniões no mesmo dia ou no dia seguinte.
Eu comecei a adotar o hábito de olhar minha agenda da semana toda e, se ela tiver algo não alinhado com minhas prioridades, eu negocio a data ou cancelo. Parece simples mas é incrível o quanto conforme a semana passa a gente vai se afastando do que realmente precisamos fazer.
Se você não tiver poder de decisão ou negociação para determinados convites, o conselho é avaliar se estar em determinadas reuniões afastam você do seu objetivo do dia ou da semana. É possível acomodar sem prejudicar o que você planejou entregar? O quanto participar de reunião x ou y coloca em risco o seu planejamento? Essa análise rápida ajuda a entender o que fazer — se você vai aceitar ou tentar outra abordagem, como encontrar alguém pra te substituir ou escalar pra quem pode te ajudar a encontrar uma solução.
Prática #2: Avaliar nossa evolução a partir do ponto de referência mais alto
Como você avalia se está progredindo em suas entregas — ou no papel que se espera que você desempenhe? Muitas vezes nos preocupamos em rodar sprints lisos, entregando tudo o que havia sido planejado e com resultados imediatos positivos. E acabamos fazendo isso semana após semana sem entender, em alto nível, se o que estamos entregando está criando algum impacto evidente e/ou relevante para o negócio. Existe um provérbio antigo que diz algo do tipo: "não esqueça da floresta por conta das árvores", que fala basicamente sobre não perder o foco sobre o que é mais importante por conta de algo menor ou mais imediato.
O que eu costumo fazer com alguma frequência é uma pergunta simples, pra mim mesmo e pro meu time: "O que estamos fazendo está mudando ou vai mudar o jogo de verdade?"
Tentar responder (ou ajudar outras pessoas a responder) de maneira honesta a essa pergunta ajuda a entender se estou/estamos no caminho certo, ou se é preciso mudar algo no meio do caminho. Não como desistência ou fracasso, mas como resposta às informações que coletamos durante o processo. Como líderes e gestores de produto, cancelar apostas ou projetos que não fazem sentido antes que consumam mais recursos é também nosso papel.
Prática #3: Olhar sempre à frente
É relativamente fácil acabarmos trabalhando no mood de descobrir e apagar incêndios o tempo todo. O problema disso é que um problema que acontece hoje é um indício de que esse mesmo problema vai acontecer no futuro. E aí boa parte do que fazemos se torna resolver as coisas quando elas acontecem — ao invés de evitá-las. É a versão moderna do Mito de Sísifo.
O melhor jeito de não cair nesse vórtex é trabalhar com um horizonte de tempo à frente. Como líder de produto, meu trabalho é equilibrar o quanto dedico de tempo para cada horizonte: sprint, mês, quarter, ano, etc.
Só assim é possível criar planos mais robustos e que ajudem a lidar melhor com riscos e cenários não esperados — não caso a caso, mas para a maioria das situações.
Na Revelo, o que faço é tentar criar oportunidades para que PMs (mas também designers e tech leads) exercitem esses horizontes sempre que possível. Por exemplo: as discussões de planejamento de quarter começam com pelo 1 mês ou mais de antecedência; a primeira semana do quarter é dedicada a criar junto com o time planos um pouco mais robustos de trabalho, exercitando cenários e prioridades; e na metade do quarter fazemos uma revisão desse plano e mudamos o que for preciso, se preciso. Além disso, como trabalhamos com sprints semanais, conseguimos fazer avaliações rápidas dos experimentos realizados e se seus resultados estão ou não alinhados com o que se espera.
Prática #4: Assumir que nossas decisões são influenciadas pelo ego
Todos nós somos influenciados pelo ego; isso é algo inerente a todo ser humano. Mesmo assim, muitas vezes seguimos caminhos mais fáceis e/ou cômodos para nós, simplesmente porque eles permitem evitar o contato com nossas fragilidades. Isso não é necessariamente nossa culpa — lembra que no começo do texto eu falo que o universo nos pede que tenhamos respostas certas? E mais: a maioria dos ambientes espera que sejamos pessoas ativas e proativas, profissionais assertivas e com ponto de vista.
O que eu recomendo aqui é tentar entender não só como o ego, mas como os alguns vieses cognitivos (conscientes e inconscientes) manifestados por outras pessoas podem nos colocar em situações de sofrimento, mesmo que aparentemente pequeno. E também como seus vieses podem impactar outras pessoas — e fazer com que o time que trabalha com você opere de maneira insegura ou dependente de você.
Duas coisas ajudam nisso: pedir ajuda e pedir pra responder em outro momento (essa segunda dica é do Ben Horowitz). É surreal quantas decisões tomadas no calor do momento (e que não precisavam ser tomadas ali) têm consequências ruins, simplesmente porque não consideramos todas as informações que temos — ou que precisamos buscar.
Já escrevi sobre vieses cognitivos em outra edição dessa newsletter, aqui.
Prática #5: Tenha uma estratégia de aprendizado.
Eu sou um grande entusiasta de referências, e não é por acaso. As melhores e os melhores profissionais com quem trabalhei (de qualquer área) tinham em comum o fato de terem muita referência de qualidade — frameworks, modelos mentais, métodos e cases — que poderiam ser aplicados com sabedoria a situações pelas quais passassem no dia-a-dia. Referências pra mim sempre tiveram o papel de oferecer um mapa, para ajudar a traçar rotas mais seguras de decisão ou investigação. Ao contrário do que muita gente acha, elas não são receitas prontas ou verdades inquestionáveis.
Pra se chegar em boas referências precisamos ter um processo minimamente estruturado de coleta e avaliação de fontes de conteúdo, sejam elas quais forem (dados de mercado, textos e artigos, cases publicados, palestras, pesquisas, teses e livros, entre outras coisas). A questão é que acompanhar múltiplas fontes de conteúdo gera uma lista interminável de itens pra ler, e que só vai aumentando ao longo do tempo. E isso inevitavelmente acaba gerando ansiedade e frustração. A língua japonesa possui um termo pra isso — 'tsundoku', que é a prática de acumular leituras e nunca terminá-las.
O que recomendo aqui é equilibrar a coleta e a leitura de textos mais curtos (e potencialmente mais "frescos" ou atuais) com materiais mais longos (como um livro ou um report setorial, por exemplo). Consumir muito conteúdo de plataformas como o medium acaba deixando as pessoas bitoladas e sem repertório real — pouca gente nessas plataformas está disposta a criar argumentos mais robustos; a maioria do que se vê por lá é bem superficial — faz parte da natureza desse tipo de produto.
Além disso, eu acho bem importante ter uma lista de livros — de preferência que não tenham sido escritos só pro mercado, mas que tenham algum embasamento mais profundo (como uma tese acadêmica por exemplo, ou livros menos recentes, que tenham conseguido se provar ao longo do tempo).
Sempre muito cuidado com conteúdo de palco — busque conteúdo que lhe ajude a criar seu próprio ponto de vista, e não a replicação de opiniões ou achados de outras pessoas.
Pra terminar
Essa lista não tem pretensão de ser exaustiva ou definitiva; mas oferecer caminhos talvez um pouco menos óbvios em relação ao que se fala por aí. Mesmo assim, uma das práticas que se fala bastante e que pra mim é de fato muito útil é a conexão com pessoas que podem ajudar a analisar nossos problemas com outras lentes. Ter ao nosso redor pessoas nas quais confiamos e que oferecem perspectivas diferentes da nossa faz muita diferença e vale o esforço.
Quer compartilhar sua história ou falar sobre esse assunto? Me escreve no pfloriano[at]gmail.com. Feedbacks e ideias para novos textos são sempre muito bem-vindas também.
Pra escrever este texto, busquei me apoiar em um conceito de felicidade— dos muitos existentes — que por coincidência é o conceito mais próximo do qual acredito e tenho carregado comigo nos últimos tempos. Acabei adotando os conceitos que seguem uma abordagem um pouco mais instrumental — a felicidade como objetivo mas também como ferramenta que torna nossa existência mais fácil e permite que a gente persiga outras coisas — estas sim valorizadas por caras como Aristóteles e Nietzche — como virtude e auto-conhecimento, por exemplo. Outra coisa importante é que felicidade é um conceito pessoal, ou seja — ela é tão atingível quanto as nossas expectativas, na linha dos argumentos de Jose Ortega e Žižek. Na prática, daria pra resumir o que entendo como base da felicidade em alguns pilares: manter controle sobre a própria vida sempre que possível, equilibrar fontes de alegria internas e externas (dependente de outras pessoas), equilibrar pequenos objetivos com grandes conquistas e entender que a felicidade não deveria ser apenas sobre nós, mas também sobre o impacto que temos no mundo e nas pessoas ao nosso redor.
Paulo, li esse seu texto no Medium e ele faz muito sentido pra mim. Eu trabalho sozinho escrevendo, gravando vídeos e etc para meus cursos online. Tenho me sentido exatamente como você escreveu. Obrigado por essa reflexão! Prof. Danilo Mota
que texto incrível! muito obrigada por compartilhar suas soluções e pensamentos 😊😊